Violência doméstica e familiar: Análise das Representações Sociais em Rondônia

Autora: Ivania Prosenewicz

Mini-Bio: Doutora em Ciência Política pela UFRGS e Faculdade Católica de Rondônia. Assistente Social do MP/RO.

Titulação: Doutora

País: Brasil

Estado: Rondônia

Cidade: Ji-Paraná

E-mail de contato: iprosenewicz@bol.com.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2902-1182

Autora: Lígia Mori Madeira

Mini-Bio: Doutora em Sociologia e Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFRGS.

Titulação: Doutora

País: Brasil

Estado: Rio Grande do Sul

Cidade: Gramado

E-mail de contato: Ligiamorimadeira@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3657-3153

Contribuição de cada autora:

Ivania Prosenewicz realizou o desenvolvimento da pesquisa de campo, análise e elaboração do artigo. Lígia Mori Madeira orientou a pesquisa e elaborou o artigo conjuntamente com a primeira autora.

RESUMO

Este artigo analisa as representações sociais da violência doméstica e familiar e as percepções sobre os serviços de atendimento em Rondônia. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com 24 entrevistados, sendo mulheres em situação de violência doméstica e familiar, homens autores de violência e implementadores de políticas públicas. Evidenciou-se que o significado da violência está relacionado à vivência cotidiana. O comportamento da mulher aparece em vários relatos dos agressores, como justificativa das agressões. Muitas mulheres entrevistadas também expressaram sentimentos de culpa pela violência sofrida. As representações sociais apontam falhas na rede de enfrentamento e insuficiência de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Palavras-chave: Mulher. Feminismo. Violência doméstica e familiar. Representações sociais. Políticas públicas.

Domestic and family violence: analysis of Social Representations in Rondônia

ABSTRACT

This article analyzes the social representations of domestic and family violence and perceptions about care services in Rondônia. This is a qualitative research, with 24 interviewees, being women in situations of domestic and family violence, men who commit violence and implementers of public policies. It was evidenced that the meaning of violence is related to daily living. The behavior of the woman appears in several reports of the aggressors, as justification of the aggressions. Many women interviewed also expressed guilty feelings of violence. Social representations point to flaws in the coping network and insufficient services to assist women in situations of domestic and family violence.

Keywords: Woman. Feminism. Domestic and family violence. Social representations. Public policy.

DOI: https://doi.org/10.31060/rbsp.2021.v15.n1.1139

Data de recebimento: 25/04/2019

Data de aprovação: 16/06/2020

INTRODUÇÃO

A violência doméstica e familiar é um problema social recorrente, grave, de difícil solução, e está presente no cotidiano de mulheres em todo o mundo. Essa problemática não é recente, mas era invisível; historicamente muitas mulheres são objeto da violência masculina, mas a situação se restringia ao ambiente familiar, sem a intervenção do Estado.

No Brasil, somente na década de 80 do século XX, com a consolidação do movimento feminista e de mulheres enquanto “força política e social”, a violência contra a mulher começou a ser discutida e a ter maior visibilidade, inclusive com a implantação de delegacias próprias (SARTI, 2004, p. 42). No entanto, o problema continua, sendo frequente o uso da violência de todas as formas, por parte de muitos homens, como demonstração de poder nas relações de gênero. Por esse motivo, há décadas, a mobilização do movimento feminista vem resultando em políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica e familiar.

Com a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, a violência doméstica e familiar passou a ser considerada violação dos Direitos Humanos e um grave crime. A partir dessa Lei, vários serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar foram implementados no Brasil, ampliando-se a rede de atendimento. Porém, estudos apontam muitas dificuldades nesses serviços, como a quantidade e as deficiências estruturais e de equipe técnica, o que prejudica a efetividade da Lei Maria da Penha naquilo que se propõe, que é a punição, a proteção e a prevenção da violência (BRASIL, 2013; PASINATO, 2015).

Da mesma forma em que há obstáculos na aplicação da referida Lei, existem dificuldades na compreensão da complexidade das manifestações da violência doméstica e familiar. Guimarães e Pedroza (2015, p. 259) entendem a violência “como um fenômeno complexo e múltiplo. Pode ser compreendido a partir de fatores sociais, históricos, culturais e subjetivos, mas não deve ser limitado a nenhum deles”.

Assim, esta pesquisa busca mostrar várias percepções, de diferentes olhares, em relação à violência doméstica e familiar. Foi realizada no estado de Rondônia que, em seu contexto social e histórico, destaca-se pela forma como se sucedeu sua ocupação populacional, pois recepcionou pessoas oriundas de diversas regiões do Brasil, com suas culturas diferentes, que buscavam em Rondônia oportunidades de trabalho. É considerado um estado jovem, instalado em 4 de janeiro de 1982 (antes na condição de Território Federal), compõe a Amazônia Legal, está localizado na região Norte do país, é formado por 52 municípios e possui uma população estimada pelo IBGE (2018) de aproximadamente 1,757 milhão de habitantes.

Optou-se por realizar o estudo em Rondônia pelo alto índice de violência doméstica e familiar. No Mapa da Violência 2015, o estado aparece na 7ª posição na comparação das taxas de homicídios de mulheres nos estados e em suas respectivas capitais brasileiras (WAISELFISZ, 2015). Além disso, a escolha do local deu-se, também, pela escassez de pesquisas nessa temática em Rondônia. Assim, pretende-se fornecer elementos para implementação de políticas públicas de prevenção e combate à violência doméstica e familiar.

O objetivo deste estudo é analisar as representações de mulheres em situação de violência doméstica e familiar, de homens autores de violência e de implementadores de políticas públicas, sobre os sentidos da violência doméstica e familiar e as percepções em relação aos serviços de atendimento.

O presente artigo analisa três categorias centrais: a) as representações do significado da violência; b) a culpabilização da mulher pela violência; c) as percepções sobre os serviços de atendimento.

Representações sociais: origem e contextualização

A noção de representações sociais surgiu na sociologia com Émile Durkheim, que utilizava-se das representações coletivas, nome dado por ele, para analisar a realidade coletiva. A partir da utilização e interpretação por Serge Moscovici na década de 60, na psicologia social, o conceito passa a ser definido como representações sociais (PORTO, 2006; ROCHA, 2014).

Moscovici tinha consciência que o modelo de Durkheim era estático e tradicional, pensado para tempos em que a mudança se processava lentamente. As sociedades modernas, porém, são dinâmicas e fluidas. Por isso o conceito de 'coletivo' apropriava-se melhor àquele tipo de sociedade, de dimensões mais cristalizadas e estruturadas. Moscovici preferiu preservar o conceito de representações e substituir o conceito 'coletivo', de conotação mais cultural, estática e positivista, com o de 'social': daí o conceito de Representações Sociais. (GUARESCHI, 2013, p. 157).

Na análise das representações, deve-se levar em conta não o sujeito individual, mas os fenômenos produzidos naquela realidade social, “é necessário analisar o social enquanto totalidade”. Essa totalidade envolve comunicação, e comunicação é mediação. As mediações sociais estão presentes de diversas formas e procuram dar sentido e significado à “existência do homem no mundo”. Das mediações sociais brotam as representações sociais, que “são uma estratégia desenvolvida por atores sociais para enfrentar a diversidade e a mobilidade de um mundo que, embora pertença a todos, transcende a cada um individualmente”. No decorrer do processo, as próprias representações sociais tornam-se mediações sociais e dessa forma buscam interpretar, entender e até mesmo construir o mundo (JOVCHELOVITCH, 2013, p. 67-68).

As representações sociais sofrem influências dos grupos, e também são produtos da ciência e da mídia; nesse sentido, podem sofrer transformações no decorrer dos anos, “sendo produzidas e apreendidas no contexto das comunicações sociais, são necessariamente estruturas dinâmicas” (SPINK, 1993, p. 305). Assim, muitos sentidos não são de fato produzidos pelo sujeito, mas sim, por meio de influências, sendo aceitos e reproduzidos como representações sociais.

[...] nesse mundo complexo, plural, fragmentado e, sobretudo, desigual, característico da modernidade, os indivíduos não detém, de modo igualitário, o mesmo potencial de produção de sentidos, explicação e enfrentamento do mundo, na forma das representações sociais. Pelo contrário, apenas alguns indivíduos, grupos ou setores da sociedade se constituem em protagonistas desse processo. Os demais, que formam, de fato, a maioria, apenas consomem conteúdos (normas, valores, etc.) que não produzem. (PORTO, 2010, p. 164).

As representações sociais são formas de conhecimento distintas de outros conhecimentos científicos, por serem do senso comum, mas são "objeto de estudo legítimo por sua importância na vida social, pela contribuição que trazem para processos cognitivos e interações sociais" (JODELET, 2003, p. 53, tradução nossa).

Minayo (2013, p. 90) aborda as concepções sobre as representações sociais de autores clássicos como Durkheim, Marx, Weber, entre outros, trazendo as concordâncias e divergências dos autores sobre as representações, e conclui que as representações sociais, “enquanto imagens construídas sobre o real é um material importante para a pesquisa no interior das Ciências Sociais”. Para analisar as representações sociais é necessário compreender as estruturas e os comportamentos sociais, levando em consideração que a linguagem é a expressão que traduz o cotidiano vivenciado pelos diferentes grupos sociais.

Por serem ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e 'verdadeiras', as representações podem ser consideradas matéria-prima para a análise do social e também para a ação pedagógico-política de transformação, pois retratam e refratam a realidade segundo determinado segmento da sociedade. Porém, é importante observar que as Representações Sociais não conformam a realidade e seria outra ilusão tomá-las como verdades científicas, reduzindo a realidade à concepção que os homens fazem dela. (MINAYO, 2013, p. 91).

No meio científico, encontramos estudos em diversas áreas no campo das representações sociais. Neste artigo direcionou-se o olhar para as representações da violência doméstica e familiar, tendo em vista que é impossível compreender o fenômeno da violência “sem se interrogar sobre os sentidos, os valores e as crenças que estruturam e presidem a vida social, os quais são o conteúdo por excelência das representações sociais” (PORTO, 2006, p. 250).

Por meio das representações é possível entender o que os grupos ou os indivíduos pensam da violência, o que definem como violência, que varia conforme o ambiente em que ela é construída. Assim, ao analisar o fenômeno da violência doméstica e familiar na perspectiva das representações sociais é possível

[...] captar os sentidos que os atores (protagonistas ou vítimas da violência) atribuem às suas representações e às suas práticas, sem secundarizar o sistema (ambiente, contexto, situação, estruturas) no qual esses atores agem e onde ações violentas são praticadas. Privilegia a subjetividade das representações sabendo, no entanto, que elas só se constroem em relação a um dado contexto ou ambiente objetivamente dado. (PORTO, 2006, p. 264).

As representações são importantes na busca da compreensão do fenômeno complexo que é a violência doméstica e familiar contra a mulher, suas múltiplas causas e o significado da violência de gênero.

Procedimentos metodológicos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo-analítica, realizada no estado de Rondônia, com mulheres em situação de violência doméstica e familiar, homens autores de violência e implementadores de políticas públicas.

Utilizou-se, para coleta de dados, entrevista semiestruturada, com roteiros de questões específicos para cada grupo entrevistado. No total foram entrevistadas 24 pessoas, sendo seis mulheres em situação de violência, sete homens autores de violência e onze implementadores de políticas públicas. Os implementadores participantes foram: assistentes sociais (2), psicólogos/as (4), juízes (2), assistentes de promotoria de justiça (2) e promotora de justiça (1). Para preservar a identidade dos entrevistados utilizaram-se letras seguidas de número, da seguinte forma: "M" para mulher, "I" para implementador e "H" para homem autor de violência doméstica e familiar.

O estudo foi realizado entre outubro de 2016 e fevereiro de 2018 em duas cidades do estado de Rondônia, sendo Porto Velho (capital) e Ji-Paraná (segundo município com maior número de habitantes). As entrevistas ocorreram nas seguintes instituições da rede de enfrentamento da violência doméstica e familiar: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS; Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – DEAM; Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher; Promotoria de Justiça não especializada; Promotoria de Justiça Especializada de Atendimento à Mulher; Vara Criminal com Especialidade em Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

A técnica de análise de conteúdo foi utilizada em todo o percurso da pesquisa. Na primeira etapa, a pré-análise, foram construídas e reconstruídas as hipóteses; na segunda etapa, na exploração dos materiais coletados e categorização, realizou-se leitura exaustiva e agrupamento dos conteúdos parecidos, onde foi possível identificar as categorias a serem trabalhadas; e a terceira etapa constituiu-se na agregação dos dados nas categorias e as interpretações (BARDIN, 2002; CAVALCANTE et al., 2014 ).

Representações sobre os sentidos da violência doméstica e familiar

As representações dos participantes desta pesquisa, ou seja, das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, dos homens autores de violência e dos implementadores, foram expressas enquanto percepções individuais, mas esses sentidos estão ligados aos fatores sociais, culturais, históricos, entre outros, levando em consideração que:

As dimensões pessoais e subjetivas são algumas das facetas que constituem o fenômeno da violência, ao mesmo tempo que são constituídas por ele. É necessário, ainda, articular, nessa compreensão dialética, fatores sociais, históricos e culturais. A forma com que tais dimensões afetam (e se afetam) pelos sentidos e explicações associados ao fenômeno da violência precisa, assim, ser motivo de análise e reflexão. (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015, p. 260).

A primeira categoria analisada é o significado da violência doméstica e familiar. Nos relatos das mulheres em situação de violência, encontram-se discursos muito parecidos em seus conteúdos, mas cada um carrega a própria história e vivência, conforme seguem as falas:

Para mim, violência contra a mulher é xingar, bater e ameaçar. (M1).

A violência é muita coisa, a covardia, a calúnia, a ameaça, a agressão física, mas, para mim, violência também é ser traída. (M2).

Observa-se que as representações apresentam várias formas de violência doméstica e familiar. A primeira fala é baseada nos tipos de violência, nesse discurso a mulher percebe as violências psicológica e física, e esse é o sentido para ela. Já o segundo discurso expõe o conhecimento da entrevistada sobre a violência doméstica e familiar; ela traz a covardia como uma atitude violenta, mas, como significado, acrescenta a traição, demonstrando sentimento de desaprovação.

A violência psicológica é perceptiva na maioria das falas, ocorre desde o início e perdura durante todo o ciclo de violência, sendo considerada, muitas vezes, mais intensa que a agressão física (FONSECA et al., 2012).

A violência psicológica acho a pior, está em todas e afeta a vida, nela está a humilhação, o homem que explora a mulher para o trabalho, são relacionamentos tóxicos. (M4).

Essa entrevistada percebe os danos da violência psicológica. O discurso sobre a exploração para o trabalho traz sua dimensão pessoal, sua história de vida. Embora não tenha sido citada nessa fala, foi possível perceber, no contexto do conteúdo, a conotação negativa em relação ao controle e à gestão exclusiva do homem nas finanças domésticas, o que lhe causava revolta e sentimento de exploração; mesmo a entrevistada tendo autonomia financeira, mantinha-se dependente emocionalmente.

Percebe-se que no significado da violência está subjacente a situação vivenciada pela mulher, isso ocorre porque as representações são provenientes do meio em que se vive, da compreensão que se tem da realidade. A esse respeito, Porto (2010, p. 75) esclarece que “aquilo que os atores sociais nomeiam como violência varia segundo as representações que esses fazem do fenômeno. Varia igualmente, segundo a natureza da sociedade na qual o fenômeno é definido”.

Para uma das mulheres entrevistadas, a traição é representada como uma forma de violência; em seu relato, a traição provocou mais sofrimento que as agressões físicas sofridas. Ao expor a situação vivenciada, foi possível identificar quanto o sofrimento ainda estava presente. Na fala a seguir está expressa toda a humilhação e dor vivenciada por essa mulher:

Ele me traía muito, saía à noite, chegava bêbado, e ainda contava vantagens sobre o que fazia; aquilo me doía tanto, acho que a gente sofre mais do que quando leva um soco na cara; eu me sentia humilhada, desrespeitada. (M2).

No contexto social dessa entrevistada, a traição é tida como algo não aceitável no relacionamento conjugal. Nessa representação, percebe-se que a traição do homem, historicamente aceita pela sociedade como próprio da natureza masculina, não é tolerada pela mulher, que entende o fato como uma agressão. A infidelidade, explicitada pelo cônjuge, causava-lhe sentimento de inferioridade e significativo prejuízo emocional.

A violência sexual praticada por parceiro íntimo nem sempre é percebida. Uma das mulheres entrevistadas discorda do estupro no casamento; em sua concepção, não há violência sexual na relação entre marido e mulher, conforme o relato:

Na delegacia perguntaram se eu fui estuprada porque estava toda mordida. Claro que não, se eu estava na casa dele, já tinha três dias, era porque eu queria; aí, dizer que a mulher é estuprada quando mora junto, quando é amasiada, não existe. Se está casada tem suas obrigações. (M3).

O relato mostra que é comum, ainda nos dias atuais, a mulher não identificar abusos sexuais por parte do parceiro íntimo, tendo em vista que há toda uma construção social e cultural em que a mulher foi educada para agradar e satisfazer as necessidades do marido, assim, a relação sexual, mesmo que abusiva, é considerada uma obrigação de esposa.

Na construção social da sexualidade que prevalece a “dominação masculina”, muitas mulheres sofrem estupros no casamento, mas não percebem como violência, pois, conforme Bourdieu (2002), quando os pensamentos dos dominados estão estruturados com a mesma estrutura da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos são de submissão. Contudo, o autor explica que, mesmo com todo esse processo de construção simbólica de dominação sexual masculina, ainda há espaço e possibilidade para a resistência dessa imposição.

O estupro no casamento foi visto até recentemente “como impossibilidade lógica, uma vez que o direito ao corpo da mulher era entendido como algo transferido para o marido no momento do casamento” (BIROLI, 2014, p. 133). Ou seja, a subordinação da mulher às vontades do esposo. E devido à cultura machista, o estupro no casamento ainda é pouco denunciado e, na maioria dos casos, não há comprovação. São muitos os fatores que “contribuem para que a violência sexual dentro de relações de parcerias estáveis seja de difícil reconhecimento e delimitação” (SCHRAIBER et al., 2007, p. 798). Entre eles, destacam-se as diversas denominações dos atos de agressão e a questão cultural.

Neste estudo, solicitou-se às entrevistadas que expressassem uma palavra ou frase que significasse a violência doméstica contra a mulher. O Quadro 1 mostra as palavras citadas para representar a violência doméstica contra a mulher. A frequência é maior que o número de entrevistadas, pois cada uma verbalizou mais de uma palavra ou frase.

Quadro 1 – Palavras e frases do significado da violência doméstica e familiar para as mulheres entrevistadas

Palavras/Frases Frequência

Agressão física

Ameaçar

Bater

Calúnia

Coisa muito horrível

Covardia

Espancamento

Exploração para o trabalho

Falta de amor

Homem monstro

Machismo

Traição

Violência psicológica

Xingar

2

2

1

1

1

1

1

1

1

1

1

2

2

2

Total 19

Fonte: Elaboração própria a partir das entrevistas com as mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Obtiveram-se respostas que indicam violência física, como "bater" e "espancamento" e violência psicológica, como, por exemplo, "ameaçar" e "proferir palavrões". Além dessas palavras, as entrevistadas citaram também outras representações com significados singulares, como "falta de amor", "traição" e "machismo", que para elas têm significado simbólico.

Dentre os homens autores de violência doméstica e familiar, houve expressões de significados semelhantes, sendo que quatro dos sete entrevistados restringiram à violência doméstica e familiar as agressões físicas. Seguem alguns discursos:

Espancamento, acho que não é papel de um homem fazer isso com nenhuma mulher. (H1).

A violência é a briga, quando a pessoa bate na outra. (H2).

Violência, no meu ver, é quando o homem bate na mulher. (H6).

Um dos entrevistados mencionou que só a violência física tem significado, ele não concorda com as outras formas de violência doméstica e familiar configuradas pela Lei Maria da Penha:

Hoje não pode xingar que é violência, tudo agora é Maria da Penha, não pode mais gritar com a mulher, mas lei pro homem não tem nenhuma. Gritar e xingar não seria violência, só aqueles que batem de deixar roxo é o caso, né? É o que eu acho. (H5).

Esse entrevistado, por discordar de que a violência doméstica e familiar não é só física, não concordava com a punição que recebeu de comparecer obrigatoriamente aos encontros do grupo reflexivo. Igualmente na pesquisa realizada por Moraes e Ribeiro (2012), com homens autores de violência doméstica e familiar, verificou-se que os homens não se percebiam como agressores ou autores de violência, pois quando expressavam concordância com a Lei Maria da Penha, justificavam que deveria ser aplicada somente nos casos mais graves, rejeitando a acusação a eles atribuída.

Todas as mudanças ocorridas nas estruturas familiares, ao longo das últimas décadas, e as políticas públicas voltadas à igualdade de gênero poderiam possibilitar aos homens a construção de “outras subjetividades”, mas, como observa-se na fala anterior, corroborando com Westphal (2016, p. 108), ainda encontramos subjetividades “voltadas ao tradicional, aos modelos que lhes impõe enquanto provedores, responsáveis pelo lar e por consequência os que direcionam como deve acontecer a organização do lar e das pessoas que ali residem”. Nesse contexto, torna-se um desafio pensar em estratégias políticas de abordagens que consigam chegar a esses homens e modificar suas representações, e consequentemente, seu modo de agir.

Para Bortoli e Tamanini (2016, p. 135) é necessário responsabilizar os homens pela violência praticada contra as mulheres, entretanto, é preciso um trabalho cultural, planejado, contínuo e em longo prazo, para a produção de “outras experiências”, possibilitando, assim, que os homens, autores de violência ou não, possam despertar novas subjetividades “no que tange às suas práticas de masculinidade”.

Nos discursos dos demais homens entrevistados, foram citadas outras formas de violência doméstica e familiar:

Eu considero a violência contra a mulher chegar a agredir, bater nela. A violência também é o modo como a gente fala com ela, que é a violência verbal. (H4).

Para mim a violência é bater e também gritar com a mulher, ameaçar e proferir palavrões a ela. (H2).

O sentido da violência doméstica e familiar para um dos entrevistados, que já estava no último encontro de um grupo reflexivo para homens autores de violência, foi distinto e mais completo, comparado aos demais homens que não participaram ou estavam no início dos encontros desse grupo, conforme segue:

Violência é muita coisa, até falar alto com a mulher eu acho que é violência, é falta de educação. A educação em primeiro lugar em tudo, onde tem educação tem respeito, a mulher merece respeito. (H7).

Esse entrevistado relatou que houve mudança em sua visão no decorrer das reuniões do grupo reflexivo; para ele, antes de frequentar as reuniões, a violência doméstica se limitava a agressões físicas. As temáticas trabalhadas no grupo possibilitaram a esse homem entender que a violência doméstica ocorre de diversas formas.

Na questão direcionada aos homens para expressarem em uma palavra ou frase o significado da violência doméstica e familiar contra a mulher, obteve-se como resultado várias palavras ou frases diferentes, pois cada entrevistado evocou mais de uma palavra ou frase, sendo que algumas surgiram com maior frequência, conforme apresentação no Quadro 2.

Quadro 2 – Palavras e frases do significado da violência doméstica e familiar para os homens autores de violência entrevistados

Palavras/Frases Frequência

Agressão física

Ameaçar

Bater

Brigas

Covardia

Discussão

Espancamento

Falta de respeito

Não é papel de homem

Não ser injusto

Tratar a mulher mal em casa ou em qualquer lugar

Quando a pessoa bate na outra

1

1

2

1

1

2

1

1

1

1

1

1

Total 14

Fonte: Elaboração própria a partir das entrevistas com os homens autores de violência doméstica e familiar.

Os resultados mostraram que os significados da violência doméstica e familiar representados pelos homens, autores de violência, foram variados, expressaram algumas formas de violência como significado, mas também há conteúdos de cunho sociocultural, como, por exemplo, “não é papel de homem”, sendo um sentido construído socialmente por meio de valores.

Em relação às representações dos implementadores sobre o significado da violência doméstica e familiar, verificaram-se conteúdos diversificados e mais abrangentes, tendo em vista que esses entrevistados possuem um olhar de quem presta o atendimento, um olhar de fora, diferentemente dos significados para as mulheres em situação de violência e os homens autores de violência. Seguem os discursos:

Ignorância, quando a gente ignora outras formas de pensar. A violência e os preconceitos são filhos da ignorância. (I1).

A pessoa que desrespeita o outro é uma violência, assim é todo o desrespeito empregado a alguém. (I2).

O significado da violência contra a mulher para mim é a dor. É um fenômeno que atinge todo mundo, algo que qualquer mulher está exposta a sofrer a qualquer momento. (I5).

A violência é a falta de amor, falta de enxergar o outro como responsável pela tua felicidade, falta de amor no outro, egoísmo, injustiça. Mas tudo se resume na falta de amor. (I9).

Um dos aspectos que chama a atenção nessas falas é o distanciamento dos conteúdos dos discursos das mulheres em situação de violência e também dos homens, autores de violência. Muitas mulheres e homens citaram os tipos de violência como significados. Os implementadores também expuseram suas percepções em relação à tipificação e as causas da violência doméstica e familiar, mas, como sentido, representaram suas concepções enquanto profissionais e como sentem os problemas da demanda que chega até eles, que é diferente de quem vivencia a violência.

Para os implementadores também direcionou-se a questão de exteriorizarem uma palavra ou frase para o significado da violência doméstica e familiar contra a mulher; o Quadro 3 mostra o resultado. Cabe informar que cada implementador expressou mais de uma palavra ou frase, por esse motivo a frequência é maior que a quantidade de entrevistados.

Quadro 3 – Palavras e frases do significado da violência doméstica e familiar para os implementadores entrevistados

Palavras/Frases Frequência

Covardia

Desrespeito

Desequilíbrio

Desrespeito empregado a alguém

Dor

Falta de amor

Ignora outras formas de pensar

Ignorância

O que me invade e invade o outro

O que não é bom para todos

O silêncio mata

3

2

1

1

1

1

1

1

1

1

1

Total 14

Fonte: Elaboração própria a partir das entrevistas com os implementadores de políticas públicas.

No Quadro 3, as palavras que mais se repetiram nas representações dos implementadores em relação ao significado da violência doméstica e familiar foram "covardia e "desrespeito", dentre muitas outras palavras e frases que possuem a representação decorrente da vivência e da experiência profissional. Como exemplo, “o silêncio mata” foi expressa por uma implementadora que atua nos casos que envolvem tentativa ou feminicídio; para ela, a frase tem sentido no contexto de seu trabalho: o silêncio, referido aqui, é de mulheres que não denunciaram as agressões sofridas e acabaram mortas. Da mesma forma, todas as palavras e os termos têm o seu significado no discurso de quem pronuncia, haja vista que as representações sociais do fenômeno da violência “não são independentes do campo social em que são construídas” (PORTO, 2010, p. 75).

Discursos sobre a culpabilização da mulher pela violência sofrida

As representações sobre a culpabilização da mulher pela violência sofrida é a segunda categoria analisada, visto que a maioria dos homens, autores de violência, atribuiu a culpa à mulher, alegando que o comportamento inadequado, as provocações ou a tentativa de controlá-los que motivaram as agressões.

Desde o início brigamos, eu gosto de beber e ela não aceita, mas me conheceu em um bar e agora quer me controlar [...]. No dia que eu fui preso e fiquei duas semanas na cadeia, eu não lembro bem o que aconteceu [...] só sei que ela estava com o rosto todo arranhado na delegacia. (H4).

[...] no início não tinha briga, mas depois ela começou a me controlar, quando eu queria sair sozinho, jogar bola, ela começava a dizer que eu ia atrás de outra mulher. Na última briga foi em um domingo, eu ainda uso maconha, aí fumei bastante na noite anterior e acordei meio neurótico e aconteceu toda a briga. (H6).

Resultado semelhante foi encontrado por Bortoli e Tamanini (2016), no sentido de que os homens atribuem a violência que praticaram ao comportamento da mulher. Nas percepções dos homens, as agressões ocorreram porque eles foram provocados, ou porque a mulher tentou impedi-lo de fazer uso de bebidas alcoólicas. Da mesma forma, Rosa et al. (2008, p. 155) evidenciaram que os homens "transferem para a companheira a culpa pela situação, não se reconhecendo como agressores; ao contrário, racionalizam a ação agressiva como comportamento desencadeado pela mulher".

Nas representações das mulheres também se obtiveram discursos de autoculpabilização:

Eu é quem deveria ser presa, eu que provoco, eu sou a culpada pelas brigas, eu começo a bater. (M1).

Nessa fala, percebe-se que a mulher sente-se culpada por ter começado "a briga", entretanto, mesmo com a possibilidade dela ter iniciado as agressões, no contexto das correlações de forças, da violência de gênero, a mulher está sempre em desvantagem, "o saldo negativo da violência de gênero é tremendamente mais negativo para a mulher que para o homem" (SAFFIOTI, 1994, p. 446). Sendo o caso dessa entrevistada, que relatou muitos episódios de violência em que sofreu lesões corporais graves.

Outras entrevistadas também se culpam pela violência, inclusive pelo vínculo afetivo que mantém com o companheiro:

Muitas vezes que aconteceram as agressões, é porque eu tinha procurado ele, eu voltava para a casa dele, eu procurava por ele, não conseguia ficar longe, eu não deveria voltar lá. (M3).

Eu já me senti culpada, não pelas agressões, mas pelas traições. Ele chegava em casa e se eu estava cuidando das crianças, desarrumada, às vezes cheirando cebola, pois sempre tinha que estar com a comida pronta, ele dizia que era por isso que procurava outra fora de casa, e eu me sentia culpada por não estar cheirosa e bonita. (M5).

Os relatos denotaram que, em várias situações, as mulheres expressaram sentimento de culpa pelo relacionamento conflituoso, algumas vezes, mencionaram que poderiam ter evitado as agressões, não provocando o companheiro. Por essa autoculpabilização, permaneceram anos no relacionamento, mesmo sofrendo violência.

Houve a representação de uma participante da pesquisa que atribuiu à mulher a culpa pelo feminicídio:

Algumas mulheres são culpadas pela situação que vivem, eu tinha uma amiga e o marido dela matou ela porque ela estava traindo. Ele sempre foi violento com ela, não aceitava a separação, mas tratava ela como uma princesa e ela gostava da vida boa, ela era muito sem-vergonha, mesmo sabendo que isso podia acontecer, ela saia com outros homens. Penso que ela foi culpada por ter provocado isso. (M6).

É interessante perceber como a representação pode mudar quando a pessoa consegue sair da própria situação, que ela mesma vivenciou, e olhar para outras situações. Essa entrevistada, da fala anterior, não se culpou pela violência sofrida, inclusive, quando relatava as violências sofridas, verbalizou que ninguém tem o direito de bater em ninguém, contudo, ao avaliar outra situação, culpabilizou a vítima pelo feminicídio. Observa-se que muitas mulheres também apresentam discursos machistas decorrentes da educação cultural e da construção social da hegemonia masculina que determinam suas representações.

Percepções sobre os serviços de atendimento

A terceira e última categoria analisada, neste artigo, diz respeito às percepções sobre os serviços de atendimento, nas quais se verificou que a maioria das mulheres percebeu serviços incompletos. Nenhuma das entrevistadas teve acesso a atendimento psicológico e todas expressaram que gostariam de receber esse atendimento:

Eu não me sinto mais segura com homens, meus dois casamentos foram de violência, preciso tratar esse medo, acho que é trauma, mas nunca recebi nenhum atendimento de psicólogo ou de assistente social. Falam que a mulher que é agredida tem esse direito, mas para mim não me falaram onde eu posso ser atendida. Nunca ouvi falar [...] que isso funciona aqui. (M2).

Na delegacia, todas às vezes me trataram bem, mas atendimento de psicólogo nunca tive. Agora já passou muito tempo, mas quando eu estava com ele, acredito que seria muito bom, porque minha família dizia para não procurar ele, que era usuário de drogas, e sempre me batia, mas não sei o que me dava, eu sempre voltava para a casa dele, até os meus filhos eu deixei com minha mãe para ficar com ele. Acho que o psicólogo poderia me ajudar a entender isso. (M3).

Evidencia-se que as entrevistadas possuem a compreensão de que o atendimento psicológico poderia auxiliá-las e possibilitar o empoderamento. Nesses relatos, percebe-se que os serviços de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar são insuficientes e fragmentados, não atendem toda a demanda, e muitas mulheres desconhecem a existência de tais serviços. A rede de enfrentamento é falha; as mulheres entrevistadas sofreram violências graves e reiteradas, passaram pelos serviços da justiça, mas não foram encaminhadas de forma clara e objetiva para o atendimento psicossocial.

Duas participantes que acessaram as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs) avaliaram o serviço positivamente:

Nas delegacias da mulher que procurei, pois como mudava de cidade constantemente, eu registrei boletim de ocorrência contra meu marido em várias delegacias, sempre fui muito bem atendida, foram mulheres que me atenderam. (M5).

O pessoal da delegacia foi muito atencioso, mas foi só eles […]. (M6).

Porém, uma mulher relatou que encontrou o homem, autor da violência contra ela, dentro da delegacia, e que este quis acertá-la com um capacete de motociclista, ou seja, na instituição que deveria acolher a mulher e oferecer um espaço adequado para ela esperar o atendimento, houve a tentativa de mais violência física por parte do agressor. Essa situação demonstra a necessidade de melhorias na infraestrutura das DEAMs.

O relato a seguir mostra as dificuldades da mulher no percurso de atendimento:

[...] ele ia me matar, eu acionei a polícia, mas demorou tanto tempo para chegar, que quando chegou, ele fugiu. As mulheres morrem porque a polícia demora muito tempo para chegar, eu dizendo que ele ia me matar, mesmo assim toda aquela demora [...]. Me levaram para a delegacia, lá eu passei mal, estava tonta, eu levei uma pancada na cabeça e estava desmaiando e vomitando, de lá levaram para o hospital [...], o atendimento no hospital foi péssimo, fiquei esperando junto com todo mundo e muito tempo [...]. (M6).

Percebe-se que a polícia não foi rápida e eficaz como deveria nas situações emergenciais, dessa forma, não foi dada a atenção adequada ao caso. Observa-se, também, que o serviço de saúde prestado à vítima não foi acolhedor e humanizado, o hospital para o qual ela foi encaminhada não estava preparado para atender mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Pedrosa e Spink (2011, p. 124) salientam que “a oferta de atendimento humanizado às mulheres que passaram por situações de violência nos serviços de saúde ainda é um desafio em todos os níveis de atenção”.

As percepções negativas, em relação aos serviços de atendimento, desestimulam a denúncia por parte das mulheres em situação de violência, tendo em vista que não se sentem seguras e tampouco acolhidas para seguir adiante em romper com os relacionamentos violentos. Para ressignificar essas representações, é preciso melhorias nas políticas públicas.

Pasinato (2015, p. 537-538), com base em pesquisas realizadas em 2008 e 2013, faz uma avaliação sobre a implementação da Lei Maria da Penha e os serviços de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, e aponta obstáculos e alguns avanços. Os obstáculos dizem respeito ao número de serviços especializados, estruturas físicas deficitárias e insuficiência de equipe de profissionais especializados. Apesar de investimentos em cursos e especialização, a valorização do 'aprendizado na prática' ainda supera o conhecimento “teórico, conceitual e metodológico sobre a violência de gênero e suas especificidades”, afetando assim os profissionais e as instituições e, consequentemente, não alterando as práticas rotineiras baseadas em crenças e valores que não consideram a gravidade da violência contra a mulher. Outro obstáculo, citado por Pasinato, está na falta ou na precária conexão entre os serviços. As instituições não trabalham de forma articulada, o que dificulta o acesso aos atendimentos das mulheres em situação de violência. Quanto aos avanços, “em algumas localidades os serviços estão sendo mais bem equipados, e a organização do atendimento já acumula alguns anos de discussão e avanços nas articulações entre os profissionais de diferentes serviços e setores”.

Em relação às percepções dos homens autores de violência doméstica e familiar, participantes de um grupo reflexivo, obtiveram-se representações positivas sobre o serviço, por outro lado, discordam da obrigatoriedade da participação nas reuniões.

Eu aprendi muito no grupo, a ter paciência, é bom demais, só não concordo com a obrigação de vir [...]. (H5).

Muito melhor que deixar preso, que sai pior de lá. Aqui a gente reflete um pouco, eu acho que está me ajudando a controlar minha raiva, vejo que parece que melhorou minha convivência familiar, só não gostei de ser obrigado a participar das palestras. (H4).

Embora a Lei Maria da Penha, art. 45, preveja que "o Juiz poderá determinar a obrigatoriedade no comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação" (BRASIL, 2007), são poucos os serviços ou programas oferecidos no Brasil, assim, não é possibilitada a reflexão, à maioria dos homens, sobre a violência de gênero como uma violação dos direitos das mulheres.

As percepções dos implementadores sobre os serviços de atendimento de que fazem parte foram positivas, na maioria das entrevistas. Contudo, ao representar sobre outros serviços da rede de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a maior parte dos discursos foi negativa.

As falas a seguir representam as percepções positivas de um projeto de atendimento aos homens autores de violência, desenvolvido pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Velho (RO):

O grupo é um espaço de reflexão que pouco foi encorajado em nossa sociedade. É comum ouvir dos homens, nos encontros, que já passaram por vários relacionamentos e sempre foram conflituosos e que precisam de ajuda, pois não sabem agir diferente e querem mudar. (I3).

Vejo muita efetividade, muito sucesso nas orientações sobre a cultura do machismo. Em um levantamento realizado aqui em dezembro de 2015, identificou-se que o número de reincidência dos homens que participam do projeto é de 2%. (I2).

A atuação da justiça, quando tem recurso, é eficaz […], vi uma eficácia da justiça voltada ao cunho social, uma resposta efetiva de transformação da pessoa. Nos encaminhamentos se percebe o resultado positivo. (I4).

Outros serviços foram também representados pelos implementadores de forma positiva, como a Promotoria de Justiça Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a Patrulha Maria da Penha:

O trabalho aqui é voltado para o social, um conjunto, todo o objetivo é cortar o ciclo, só punir não ajuda, coíbe, mas precisa de outro tipo de intervenção para cessar a violência. (I6).

A implantação da Patrulha Maria da Penha está apresentando um resultado positivo, tem o viés de atenção social, busca diminuir a revitimização, oferece proteção e apoio à mulher em situação de violência em casos que foi aplicada a medida protetiva. A equipe em visita verifica todos os problemas familiares e encaminha para a rede de atendimento [...]. (I11).

Quanto às percepções negativas dos serviços que compõem a rede de atendimento, os discursos a seguir revelam que não há articulação, os serviços não funcionam como deveriam ou são inexistentes, resultando no não atendimento às mulheres em situação de violência:

A gente consegue atender a demanda, há dificuldade quando tem que recorrer à rede, preciso encaminhar e não tem para onde, tem de nome, mas chega lá, não tem quase nada. A rede é falha. (I5).

O serviço é inexistente, no caso de tentativa de feminicídio, não há nenhum tratamento, nem para a vítima, nem para o agressor. Acho que em 90% dos casos não existe atendimento. (I10).

A política é deficiente e, por vezes, utópica. O legislador cuidou da parte burocrática, mas não tem executoriedade [...]. A lei tem que sair do papel e ter eficácia. As políticas são falhas, é uma política do improviso, em cada situação a gente vê o que faz, porque não funciona. (I11).

Todos os implementadores, que representaram sobre a rede de atendimento em seus municípios, apresentaram percepções negativas; as expressões são de serviços inexistentes, políticas públicas deficientes e de improviso, rede de atendimento falha, entre outras. É necessário o fortalecimento da rede de enfrentamento à violência doméstica e familiar.

Considerações finais

A violência doméstica e familiar contra a mulher é um problema social que atinge milhares de pessoas, causa sofrimento não somente à mulher em situação de violência, mas a toda família. Partindo desse contexto, este artigo apresentou a compreensão da violência e as percepções sobre a rede de enfrentamento expressadas por meio de representações de mulheres em situação de violência, homens autores de violência e implementadores de políticas públicas.

Por meio desta pesquisa, percebe-se que, mesmo com todas as conquistas em termos de legislação e esclarecimento em relação à violência doméstica e familiar, ainda persiste a cultura de atribuir ao comportamento da mulher a violência sofrida, sendo que, muitas vezes, a própria mulher se autoculpabiliza.

Em relação aos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, foram representados de forma geral como insuficientes e fragmentados, não atendendo toda a demanda. Evidenciou-se, por meio das percepções, que a rede de atendimento não trabalha de forma articulada.

Por outro lado, as representações sociais sinalizam serviços/projetos exitosos em Rondônia, como, por exemplo, a Patrulha Maria da Penha e o projeto “Abraço”, sendo este último desenvolvido pelo Núcleo Psicossocial do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Porto Velho (RO), referência nacional no trabalho realizado com agressores. Nesse sentido, as representações sociais apontam que grupos de reflexões com homens autores de violência podem influenciar positivamente na diminuição da reincidência da violência doméstica e familiar contra a mulher, constituindo novas possibilidades de intervenções.

Considera-se importante que além de responsabilizar e educar os homens, autores das agressões, e atender a mulher em situação de violência com prioridade, é preciso mais investimento em políticas públicas de prevenção da violência. Uma das formas de prevenção está na educação, através da qual as relações de gênero podem ser construídas com igualdade desde a infância, tendo em vista que a herança da sociedade patriarcal em relação às atribuições do homem e da mulher no lar, na qual está evidente a dominação masculina, permanece nos dias atuais e, como consequência disso, a presença da violência de gênero. Entende-se que a mudança só será possível quando houver igualdade nas relações de gênero. Assim, para Bourdieu,

Só uma ação política que leve realmente em conta todos os efeitos de dominação que exercem através da cumplicidade objetiva entre as estruturas incorporadas [...] e as estruturas de grandes instituições em que se realizam e se produzem não só a ordem masculina, mas também toda a ordem social [...] poderá, a longo prazo, sem dúvida, e trabalhando com as contradições inerentes aos diferentes mecanismos ou instituições referidas, contribuir para o desaparecimento progressivo da dominação masculina. (BOURDIEU, 2002, p. 138).

Nesse contexto, o movimento feminista, suas manifestações e análises críticas, vêm desenvolvendo um papel importante ao longo das últimas décadas na busca pela igualdade de gênero.

Em Rondônia, tendo em vista a sua posição no ranking nacional em homicídio de mulheres, que é superior à taxa média nacional, conclui-se que é preciso mais investimento do estado na ampliação das políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica e familiar e melhoria na qualidade dos serviços já existentes. Além disso, identificou-se a importância dos municípios criarem um fluxograma de atendimento à mulher em situação de violência, de forma que seja executável, levando em consideração a realidade dos serviços disponíveis em cada local, a intersetorialidade e o trabalho em rede.

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